“Dois e dois são quatro. Quatro mais quatro são oito. Oito mais oito... oito... mais...” “Deeee-zzzzeees...”
“Dezesseis!!! Dezesseis!!!”
“Muito bem! Parabéns, meu querido! Merece um beijo!”
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Minhas memórias da infância são idéias fixas, doutor. Não me incomodam nem despertam saudades. Apenas insistem em não serem esquecidas. Não constituem nenhum trauma. São persistentes e sem consistência. O que me irrita mesmo é exatamente isto: Não significam nada! Só me lembro destas besteiras: apago velas de bolos confeitados, brinco com minha bicicleta muito sorridente, passeios aos domingos... O estudo da minha infância é inútil para determinar a causa do meu medo.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Vamos com calma.Pode deixar os diagnósticos comigo. Chegamos a sua ducentésima septuagésima sexta consulta. Quanto ao que é importante... Isto eu decido.
“Eu sei o que você sente, Sr. Samsa. Qualquer leigo que tivesse tempo para te observar por dois minutos perceberia. Sua face traz o retrato da depressão. E a da pior estirpe. A que não finda e permite que o indivíduo sobreviva. Pior, que venha a mim, semana após semana... Por anos... Dezesseis longos, looongos anos”.
Contam-se catorze segundos de incômodo silêncio.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Você já teve namorada?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Minha história particular não se enquadra nesta consulta, Sr. Samsa.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Eu sei, doutor. Mas eu não consigo me sentir a vontade falando da minha vida com um boneco que nem se parece com um ser humano.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Como eu sou, Sr. Samsa?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Hã?!?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Descreva-me.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Você é feito de plástico e tem olhos verdes. Olhos de vidro, creio. Pouco cabelo, mas muito bem alinhado. Nariz afilado como deve ter um aristocrata inglês. Suas mãos longas, cheias de dedos finos e macios possuem uma postura perscrutadora. Como se estivessem sempre dispostas executar um noturno. Sem piano.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->É assim que eu sou, Sr. Samsa?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Isto é você.
“Delírio, devaneio, divino. Estranho, toda vez que as consultas caem no óbvio eu fico brincando com aliterações... Samsa abre a boca e sua voz atrasa meu relógio segundo após segundo. Dependendo dele nunca sairemos dessa sala. O maldito persiste como um inseto. Repugnante como uma barata!”.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Até as baratas morrem. Milhões de anos evoluindo. A carapaça mais forte e maleável, algumas voam, mesmo assim morrem. Uma sandália descomplica tudo.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Isto é terrível. – suspende as pernas e põe os pés na poltrona. Abraça-as e apoia o queixo nos joelhos. – conte mais.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->As baratas podem viver algum tempo sem a cabeça. São dotadas de sistemas nervosos independentes – encara Gregor – o nosso sistema nervoso é centralizado, difer...
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->OK! Eu entendi esta parte – interrompe.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Elas só morrem quando a cabeça é decepada devido à fome. Sem a cabeça não há como ingerir os alimentos.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Isto é lógico.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Fora isso, temos a figura da barata sem cabeça rondando a cozinha, resistindo e sobrevivendo o quanto pode. Um ser irracional banalizando a existência. Sem quaisquer chances de êxito. Morrerá certamente, mas constrange o mundo com sua agonia. Causando repugnância a quem tem o desprazer de observá-la.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->A natureza tenta encontrar um meio.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Mas ela morre.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Três sistemas nervosos, o Dr. disse. Parece que não teria como morrer.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Viu? Para morrer-se, sempre dá-se um jeito.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Eu queria entender o fundamento disto.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Todo esse devaneio só tinha como objetivo aclarar sua mente para um fato indubitável e que por mais que hesitemos, o senhor tem que reconhecer.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->O que?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Você não tem talento para existir, Sr. Samsa.
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Existir requer talento?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Para qualquer ser humano saudável é reconhecível o indivíduo que nem atrapalha nem contribui para preservação da espécie. São piores que os párias. Passam a existência em branco. Nada criam, nada corrompem e a nada reagem. Nada são! Um total desperdício de DNA! O Sr. compreende, Sr. Samsa?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->O senhor está diferente doutor – ri sem graça – falei algo que te aborreceu?
<!--[if !supportLists]-->- <!--[endif]-->Eu tenho uma pílula em cada mão. Uma vermelha e uma azul, Sr. Samsa. E você fará uma maldita escolha hoje. O mundo não se importa com suas queixas vazias. Sua insatisfação perene. Essa podridão imutável de idéias deformadas!!! A vermelha livrará o mundo de sua repugnância e a azul o fará mudar de atitude. Escolha uma pílula SR. SAMSA!!!
“Hum... Ele escolheu a azul. Peculiar. Apostaria na vermelha. Ambas as cápsulas continham veneno de rato, mas... azul? O Sr. me surpreendeu afinal Sr, Samsa. Pena. Tantas oportunidades...”.
Convulsões e sangue no carpete. Ninguém sentirá falta deste paciente. Apenas os piolhos choram o banquete findo. Doutor Fritz vai até o café do outro lado do Edifício Tereza Arruda. Pede um expresso por estar sem criatividade e sorri.
LOPES - 26-06-11